• O trabalho publicado na Ecological Economics mostra que a falta de uma definição do termo bioeconomia pode ser prejudicial à Amazônia e à sua população.
• O grupo de pesquisadores discutiu os termos e conceitos em uso e avaliou o impacto deles na tomada de decisão em torno das políticas públicas para o desenvolvimento e conservação da Amazônia.
• Equipe aponta que a bioeconomia é interpretada de acordo com as necessidades de cada segmento social e com as visões de cada país; por isso, recomendam a formação de um consenso a respeito de princípios e definições associadas ao termo.
• Os cientistas defendem que, na Amazônia, o termo “bioeconomia” deva estar associado ao compromisso com o desmatamento zero, equidade social e valorização das culturas locais e da biodiversidade.
Biotecnologia, biorrecursos, biomassa, biogás, biocombustíveis, agregação de valor a produtos da biodiversidade, economia ecológica… São muitos os termos, conceitos, produtos e processos que envolvem o que a comunidade científica vem chamando atualmente de Bioeconomia. E é essa amplitude do termo, ou falta de clareza, que pode colocar em risco a sustentabilidade dos ecossistemas e das populações amazônicas, segundo trabalho publicado na revista internacional Ecological Economics.
Assinado por pesquisadores brasileiros e estrangeiros, que atuam na Amazônia, o trabalho A lack of clarity on the bioeconomy concept might be harmful for Amazonian ecosystems and its people (Uma falta de clareza a respeito do conceito bioeconomia pode ser prejudicial aos ecossistemas amazônicos e à sua população) afirma que a bioeconomia é um termo amplo com diferentes significados e que pode se adequar a diferentes agendas científicas, políticas e mercadológicas.
“Bioeconomia hoje pode incluir muitas coisas, desde as monoculturas como soja e dendê, até a extração e agregação de valor a produto não-madeireiros. O que buscamos é chamar a atenção para a necessidade de esclarecer melhor esse termo e de estabelecer princípios fortes que considerem os povos amazônicos e a manutenção da floresta saudável, para que os esforços de investimentos e políticas sejam direcionados a um desenvolvimento justo para a região”, declara a pesquisadora Joice Ferreira, da Embrapa Amazônia Oriental, primeira autora do artigo.
Para os países da Amazônia e sua diversidade de contextos regionais, o trabalho aponta o termo “sociobioeconomia” como uma das abordagens mais adequadas. “O termo se refere à economia da floresta e à sua sociobiodiversidade, a combinação da diversidade biológica e cultural. A sociobioeconomia ainda considera a diversidade biocultural – a interação entre sistemas naturais e culturas humanas – e as economias indígenas, tradicionais e locais baseadas na sociobiodiversidade da região”, afirma a cientista. A utilização do termo, entretanto, deve estar pautada em princípios rigorosos, como o compromisso com o desmatamento zero, equidade social e a valorização das culturas locais e da biodiversidade, sinaliza o artigo.
A Amazônia é a região mais biodiversa do mundo, abriga a maior floresta tropical do planeta, que é o centro de regulação do clima global, e tem uma população de cerca de 30 milhões de pessoas apenas na parte brasileira do bioma. A região abriga 59% do território brasileiro, 70% de todas as áreas continentais protegidas e 83% de todas as terras indígenas do Brasil.
Conceito que expressa a inter-relação entre a diversidade biológica e a diversidade de sistemas socioculturais. É a combinação entre todos os organismos vivos na natureza, as pessoas, a cultura e as tradições.
O grupo de pesquisadores discute os termos e conceitos em uso e avalia o impacto deles na tomada de decisão em torno das políticas públicas para o desenvolvimento da Amazônia. A trajetória do conceito envolve três visões, de acordo com a literatura científica: a bioeconomia biotecnológica, focada em tecnologias intensivas em ciência para aumentar a eficiência ambiental; a bioeconomia de biorrecursos, que propõe o aumento de produtividade e intensificação do uso do solo; e a bioeconomia voltada aos processos ecológicos que promovem a biodiversidade, entre outras questões.
Para a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), por exemplo, bioeconomia é “Produção, utilização, conservação e regeneração de recursos biológicos – incluindo conhecimento relacionado, ciência, tecnologia e inovação – para fornecer soluções sustentáveis (informações, produtos, processos e serviços) em todas as áreas econômicas, possibilitando a transformação para uma economia sustentável”. Já para a Comissão Europeia, bioeconomia é termo “relacionado a todos os setores de produção primária que utilizam e produzem recursos biológicos (agricultura, silvicultura, pesca e aquicultura) e a todos os setores econômicos e industriais que usam recursos e processos biológicos para produzir alimentos, rações, produtos de base biológica, energia e serviços”.
A bioeconomia, portanto, como atesta a pesquisadora, é pensada ou tratada de acordo com as necessidades de cada segmento social e com as especificidades de cada país ou região. “Alcançar consenso sobre termos e princípios fundamentais não é apenas uma questão de semântica. Novos campos de atuação trazem novas visões e narrativas que disputam recursos, investimentos e políticas públicas. Dessa forma, as narrativas dominantes têm o poder de definir futuras estratégias de desenvolvimento para a Amazônia”, afirma Ferreira.
Pelo fato de o termo ser ambíguo e pouco claro, a bioeconomia, dependendo de sua abordagem, pode também causar impactos negativos ao ambiente. Os pesquisadores apontam o exemplo da produção do fruto do açaí (Euterpe oleracea Mart.), que é o produto da bioeconomia mais proeminente da Amazônia e o primeiro a ultrapassar um valor de mercado de US$ 1 bilhão, em 2023, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Ao mesmo tempo que a produção do fruto pode promover a conservação e o empoderamento local quando manejado de forma adequada, a rápida expansão do mercado tem levado à superexploração das florestas de várzea no estuário amazônico e à erosão da biodiversidade”, aponta a pesquisadora Ima Vieira, do Museu Paraense Emílio Goeldi, que também assina o artigo.
“A expansão das atividades de bioeconomia tem, portanto, o potencial de alterar drasticamente a Amazônia. A garantia de resultados positivos para as pessoas e a natureza dependerá de salvaguardas rigorosas. Em primeiro lugar, as definições e os princípios que sustentam a bioeconomia que traga benefícios para a sociedade e o ambiente devem ser padronizados”, afirma a cientista.
Para o pesquisador da Embrapa, Roberto Porro, que também assina a análise, o termo bioeconomia deve ser qualificado, e dar lugar ao conceito alternativo de sociobioeconomia. “Esta [a sociobioeconomia] leva em consideração a posição expressa por povos e comunidades tradicionais, que são os protagonistas da economia da floresta, enfatizando a geração de valor a partir de produtos da sociobiodiversidade e agrobiodiversidade amazônica”, reforça o cientista.
Porro acrescenta que as múltiplas expressões da sociobioeconomia amazônia constituem a abordagem em bioeconomia inclusiva por meio do qual a Embrapa busca reposicionar sua atuação na região. Os pilares dessa abordagem integram sistemas produtivos sustentáveis, valorização do conhecimento e modos de vidas locais, segurança alimentar, equidade e repartição de benefícios e redução da pobreza.
“O conceito de sociobioeconomia pode promover sistemas econômicos alternativos, em contraste com uma abordagem mercadológica tradicional, uma vez que está alinhado com as relações harmoniosas entre as comunidades indígenas, locais e tradicionais e o seu ambiente”, aponta o artigo. Mas os autores defendem que o termo esteja embasado nos valores de justiça, ética, inclusão social, conservação da biodiversidade, equilíbrio climático e conhecimento tradicional.
A lack of clarity on the bioeconomy concept might be harmful for Amazonian ecosystems and its people é assinado por Joice Ferreira e Roberto Porro (Embrapa Amazônia Oriental), Emilie Coudel e Marie-Gabrielle Piketty (Centre de coopération internationale en recherche agronomique pour le développement, CIRAD, França), Ricardo Abramovay (Universidade de São Paulo), Jos Barlow (Lancaster Environment Centre, Lancaster University, Reino Unido), Rachael Garrett (Cambridge University, Reino Unido), Alexander C. Lees (Manchester Metropolitan University, Reino Unido), Ima Vieira (Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, Brasil) e Kieran Withey (Universidade Federal de Pernambuco).