A falsa-cobra-coral (Apostolepis sanctaeritae) usa cores muitos semelhantes da coral venenosa para se proteger na natureza. Foto: Lucas Gaehwiler
Um grupo de cientistas fez importantes descobertas sobre a fauna do Cerrado durante uma expedição de 40 dias na Reserva Natural Serra do Tombador, na cidade de Cavalcante, em Goiás, unidade de conservação de 9 mil hectares administrada e mantida pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.
A equipe encontrou dezenas de espécies de répteis (lagartos, serpentes, jacarés e tartarugas) e anfíbios venenosos (sapos, rãs e pererecas) na pesquisa de campo que aconteceu em 2016. O resultado da expedição foi apresentado em artigo publicado recentemente na revista científica Arquivos de Zoologia, do Museu de Zoologia da USP (Universidade de São Paulo). O projeto, que contou com a participação de cerca de 20 profissionais, foi financiado pela Fundação Grupo Boticário e teve o Instituto Boitatá de Etnobiologia e Conservação da Fauna como parceiro.
Do total de animais avistados, a equipe registrou 54 répteis de 40 espécies diferentes, sendo 36 consideradas raras e/ou endêmicas. Nesses casos, o grupo conseguiu registrar apenas um ou dois indivíduos de cada espécie.
Um dos exemplos é a Apostolepis sanctaeritae, uma cobra vermelha com a cabeça branca e preta, popularmente conhecida como “falsa cobra coral” e descrita pela primeira vez em 1924. “É uma espécie rara, de biologia desconhecida. São conhecidos pouco mais de dez indivíduos em todas as coleções científicas do país”, disse o biólogo Reuber Brandão, integrante da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN) e professor de manejo da fauna e áreas silvestres da Universidade de Brasília (UnB) e responsável pela expedição.
Os pesquisadores contabilizaram o registro de 755 animais de 34 espécies de anfíbios. Eles se surpreenderam com a presença do sapo Rhaebo guttatus, original da Amazônia e conhecido por lançar um veneno amarelado pelas glândulas. “Foi uma grande surpresa encontrá-lo na reserva”, disse Brandão. Segundo o biólogo, o sapo está presente na Serra do Tombador por influência do vale do Rio Tocantins. “Isso mostra que a região da reserva é importante do ponto de vista biogeográfico porque abriga elementos da fauna do Cerrado e da Amazônia”, completa o professor.
Outra surpresa foi a presença do Allobates goianus, um minúsculo sapo encontrado apenas em algumas localidades do Cerrado, como no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. “Com o estudo na Serra do Tombador vimos que algumas espécies anteriormente consideradas restritas à Chapada dos Veadeiros também ocorrem nesta Reserva”, explicou. Embora tenha saído da lista de animais em risco de extinção, a espécie não era vista em algumas localidades do Cerrado há mais de uma década, segundo Brandão.
Biólogo e coordenador da Serra do Tombador, André Zecchin afirma que as descobertas mostram a importância da Reserva para a preservação da fauna do Cerrado, pois ambientes bem preservados podem refletir no bem-estar e na sobrevivência dos animais. “Os resultados mostram que áreas protegidas conseguem cumprir sua missão de conservar uma fauna tão importante e rara do bioma”, disse.
Para Iberê Machado, Presidente do Instituto Boitatá, que cuidou da gestão administrativa do projeto, "sem Unidades de Conservação (UC) é impossível proteger a biodiversidade em qualquer nível. Com isso, a RNST exerce um papel insubstituível na proteção da vida e da beleza cênica do Cerrado. Essa área é uma pérola de preservação em um bioma cada vez mais afogado pelo gado e pela soja."
A área pesquisada pertence à Fundação Boticário de Proteção à Natureza desde 2007 e foi reconhecida como RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural) em 2009. A Serra do Tombador não está aberta à visitação e atualmente tem seu foco principal em conservação e pesquisa científica, especialmente sobre o manejo integrado do fogo como estratégia de prevenção e combate a incêndios. A quase 100 quilômetros da sede do município de Cavalcante, ela está localizada em uma região de prioridade alta para a conservação da biodiversidade, segundo o Ministério do Meio Ambiente.
O Cerrado é o segundo maior bioma do Brasil, atrás da Amazônia, e a savana com maior biodiversidade do mundo. Atualmente, é também o que mais sofre com o desmatamento no país. Segundo dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), mais de 4 mil quilômetros quadrados de Cerrado foram desmatados entre janeiro e julho deste ano, crescimento de 28,2% em comparação com o mesmo período de 2021.
Rhaebo guttatus, sapo que expele veneno amarelado por glândulas nas costas, bem próximo aos olhos. Foto: Vinícius Guerra